sábado, 26 de janeiro de 2008

Gênero e sexualidade nas práticas escolares

Gênero e consumo: a escola é o palco

Assim como, ao longo do tempo, o corpo vai adquirindo marcas como as de fertilidade, de
velhice, de situações específicas como doenças, acidentes ou intervenções cirúrgicas, dentre outras,
nele também se inscrevem marcas de gênero. Desse modo, a constituição dos gêneros não é linear,
nem apresenta uma regularidade, assim como não é finalizada ou completada em um dado momento
(Meyer, 2003). Podemos então dizer que são produzidos gêneros para os corpos através, dentre
outros elementos, das marcas que neles se inscrevem. Tais marcas são produzidas pelas condições
históricas, sociais e culturais de cada época. Nas cortes européias do século XVII e XVIII, por
exemplo, alguns corpos, inclusive masculinos, eram marcados por riquezas (perucas, jóias, etc.)
buscando a identificação com a aristocracia. Já na contemporaneidade temos a indústria da moda e

o império do consumo efêmero atuando na produção de marcas1 -de gênero -para os corpos. E é
justamente sobre os tempos atuais que voltamos nosso olhar. Um tempo em que o consumo têm
sido um dos elementos em torno do qual as identidades (de gênero, de raça, de etnia, etc.) tem sido
construídas. Têm nos interessado investigar como os corpos dos(as) alunos(as) são “compostos” por
determinados artefatos (mochilas, pulseiras, celulares, roupas, etc.) produzindo determinados
sentidos e colaborando para a constituição das identidades de gênero. Dessa forma, realizamos
observações, fotografias e registros sistemáticos em três escolas públicas de Porto Alegre durante os
anos de 2004 e 2005. Além disso, temos realizado incursões na cultura em circulação (televisão,
alimentos, jogos, brinquedos, etc.) procurando entender como os significados relacionados aos
artefatos encontrados nas escolas são produzidos e compartilhados no ambiente escolar.
Como argumenta Boudrillard (1991) em sua obra intitulada A Sociedade de Consumo,
vivemos uma cultura do consumo em uma sociedade que se organiza por meio do consumo. Isso
não quer dizer que o consumo não tenha existido e tido sua importância em outras sociedades, como
bem coloca Bauman (1999): “[...] todos os seres humanos, ou melhor, todas as criaturas vivas
‘consomem’ desde tempos imemoriais.” A diferença é que, efetivamente, a nossa sociedade se
organiza em torno do consumo. Se na sociedade industrial da modernidade o valor estava na
capacidade de produção, na contemporaneidade o valor está na capacidade de consumo. O mundo
de hoje engaja seus membros na sociedade em função de sua condição de consumidor. Conforme


Coelho (1998) as “minorias”, como os homossexuais, os negros – e eu acrescentaria -as crianças, e
as mulheres, passam a ser considerados cidadãos enquanto consumidores.

A maneira como a sociedade atual molda seus membros é ditada primeiro e
acima de tudo pelo dever de desempenhar o papel de consumidor. A norma
que nossa sociedade coloca para seus membros é a de capacidade e vontade
de desempenhar esse papel. (BAUMAN, 1999, p.88)

Segundo Bauman (1999), ser consumidor em uma sociedade de consumo requer uma série
de capacidades. Uma delas é a capacidade de esquecimento e não de aprendizado. É necessário não
manter o desejo por muito tempo em um único objeto sendo capaz de facilmente perder o interesse
por ele ao ser instigado por um novo desejo de consumo. Tal capacidade está intimamente
relacionada com a flexibilidade (SENNETT, 2004) e a efemeridade (JAMESON, 1996), duas
características desse tempo. Um tempo em que mais do que consumir/comercializar produtos ou
serviços, consumimos/comercializamos marcas, logomarcas e ícones. Dessa forma o consumo não
pode mais ser entendido apenas como o consumo de bens materiais, compreendendo também o
consumo de imagens e significados.

Quanto ao consumo de imagens o mundo contemporâneo cada vez mais têm sido povoado
por outdoors, televisão, Internet, livros, revistas, jornais, celular, marcas, etc. compondo nossas
experiências cotidianas através de uma cultura altamente visual. As imagens que passam por nós, e
pelas quais passamos, atuam tanto na produção como na articulação e negociação de significados.
Ao consumirmos imagens, consumimos também modos de ser, agir, pensar, viver e sentir. Segundo
Sarlo (2000) a organização do consumo têm ocorrido em torno da valorização da juventude.
Diariamente somos bombardeados e consumimos imagens que nos ensinam o que é ser belo e ser
jovem nas sociedades ocidentais contemporâneas, nos ensinam o que é ser homem (belo e jovem)
ou ser mulher (bela e jovem). É interessante considerar também a infinidade de produtos e
procedimentos que são lançados no mercado pretendendo intervir no corpo para, por um lado adiar
a velhice dos adultos, por outro, antecipar a juventude das crianças. No entanto, quase sempre essas
intervenções se encarregam de manter e ampliar os limites bem definidos do que se entende por
masculino e feminino.

Dessa forma, tomamos os corpos dos(as) alunos(as) como elementos visuais que compõem
uma cultura visual. Nas escolas onde temos pesquisado, parece-nos, que os corpos tem sido
produzidos para serem consumidos visualmente.2 Produz-se o próprio corpo, como espetáculo, em
relação ao que os outros esperam ou não ver; segundo os padrões de exigência produzidos pela
mídia e pelo consumo. Talvez possamos dizer que um desses padrões de exigência diz respeito ao


gênero. Aprendemos sobre os gêneros dos corpos também através das imagens que os representam
na mídia impressa ou eletrônica. Contudo a mídia majoritariamente representa apenas o corpo como
masculino ou feminino, como se não existissem outras possibilidades entre esses dois pólos. No
entanto, o gênero, como diz Scott (1995), “[...] não apenas faz referência ao significado da oposição
homem/mulher; ele também o estabelece.” (p. 92).

Os corpos de crianças e jovens estampam personagens que parecem ser direcionados para
grupos de meninas e meninos. Meninos usam tênis do Seninha (inspirado no piloto de fórmula 1,
Ayrton Senna), camisetas do homem-aranha e jogam bey blade3. Os significados que são
construídos em torno desses ícones, principalmente por meio da mídia, dizem respeito à força,
aventura, velocidade, agilidade, etc. Já as meninas mostram acessórios, roupas e calçados da Barbie,
da Hello Kitty, Meninas Super Poderosas com cores que ressaltam o rosa e o brilho, são imagens
que valorizam uma feminilidade ligada ao cultivo da beleza. Santos (1997, p. 96) refere que
alguns/algumas bonecos/as (que incluem a Barbie, mas não se limitam a ela) produzem nos corpos

o que é considerado bonito: magreza, olhos claros, cabelos loiros e longos e pele branca. Esse
mesmo autor argumenta que
as bonecas são somente a ponta de um processo de representação que se
iniciou na mídia televisiva e que alcança, com suas construções de sonhos,
papéis, de lugares na sociedade, de modos de vestir, de estilos de vida, etc.,
um enorme público atento a consumir de uma forma ou de outra tais
representações (Santos, 1997, p. 95).

O que temos observado nas escolas em estudo é que os ícones e imagens que são
consumidos -como a Hello Kitty ou Homem-Aranha -são capazes de promover um certo
borramento entre as fronteiras de geração. Podemos encontrar tanto um menino ainda muito
pequeno com uma camiseta do Homem-Aranha, quanto um jovem vestindo praticamente a mesma
camiseta. O que promove a “dissolução” das fronteiras de geração são as questões de gênero que
mantém, curiosamente, suas fronteiras e limites bem definidos: meninas/jovens/mulheres com a
Hello Kitty e meninos/jovens/homens com o Homem-Aranha.

Roupas, calçados, acessórios (correntes, piercings, esmaltes, tatuagens, etc.), mochilas,
materiais escolares, etc. encontrados nas escolas confirmam a tendência apontada por Sant’anna
(2002)

[de] [...] transformar todas as partes do corpo em imagens de marca e num
marketing privilegiado do eu. Por conseguinte, o desejo de investir nas
imagens corporais torna-se proporcional à vontade de criar para si um corpo


inteiramente pronto para ser filmado, fotografado, em suma, visto e admirado
[...] (SANT’ANNA, 2002, p.106).

Corpos espetacularizados são produzidos pelos(as) alunos(as) das escolas com o intuito de
serem vistos na escola. A escola pode ser “considerada” como palco porque este é o espaço físico
central do espetáculo, e o espaço privilegiado para as crianças e jovens, pelo menos para a maioria
delas, ainda é a escola. É para lá que elas vão diariamente, e é para esse palco que produzem seus
corpos. Um dos elementos que constitui um espetáculo é o público, pois para que o espetáculo
aconteça, é necessário que alguém o veja, aprecie ou critique. A escola, por sua vez, é o local
privilegiado onde há algum tipo de público, sejam os pares (os próprios colegas, outros corpos-
espetáculo), os professores e professoras, os pais de alunos ou os funcionários. Enfim, são corpos-
espetáculo circulando no mundo das visibilidades, compondo a cultura de consumo altamente
visual.

Lembramos de uma das cenas em que D. (menina) mostra suas unhas para as colegas. Todas
querem pegar na sua mão e sentar ao seu lado. Dizem que ela está linda e perguntam quem pintou
suas unhas. No refeitório mostra para as funcionárias que servem o lanche, e, novamente, dizem que
está linda. Na hora da pracinha, mostra para a professora da outra turma e, recebe novos elogios. D.
queria “público” para apreciar o espetáculo. Suas unhas estavam pintadas da mesma cor de um
anúncio de esmalte que dizia Risque Faschion. Esmalte Fluorescente. Brilha no escuro e na luz negra. Um
esmalte fluorescente que brilha no escuro e na luz negra é um esmalte que pretende, no mínimo,
chamar atenção, pois é para ser visto mesmo no escuro, proporcionar espetáculo. Em março de
2005, uma das professoras nos contou que sua aluna de sete anos tinha pintado o cabelo de “pink”,
estava com uma blusa, uma saia e uma sandália “pink” e contava para todos que ela era “A Pink”,
referindo-se a uma das participantes do Big Brother Brasil exibido no início do mesmo ano. Quando
questionada pela professora sobre quem havia pintado seus cabelos, respondeu que ela e a prima
haviam pintado o cabelo com papel crepom, uma pintou o da outra.

Corpo e identidade estão cada vez mais inseparáveis nos dias de hoje, em que se apresentam
inúmeras possibilidades de nele intervir e, ao mudar o corpo, mudar também alguns aspectos de
nossa identidade (SANTOS, 1999). Em relação aos alunos(as) das escolas seus corpos são
compostos, em sua grande maioria, por artefatos que promovem a identificação com o masculino
(por exemplo, tatuagem do Batman) ou com o feminino (por exemplo, tatuagem da Hello Kitty).
Por outro lado, as infinitas possibilidades de consumo que o mundo contemporâneo oferece começa
a promover a utilização de artefatos que eram eminentemente pertencentes a um gênero (anéis para
meninas, por exemplo) pelo gênero oposto (no caso os meninos que usam anéis em todos os dedos,
brincos nas duas orelhas, pintam as unhas, etc.) produzindo outros significados para esses artefatos.


No final do ano de 2005, por exemplo, a “onda”, a moda do momento era usar pulseirinhas de
cilicone coloridas. Tanto meninas com meninos, de várias idades, usavam várias pulseiras nos
braços e tornozelos. Essa “febre” avassaladora se caracterizou pela quantidade de pulseiras que cada
indivíduo portava e pelo uso que delas fazia. Embora aparentemente meninos e meninas portassem
as pulseirinhas o uso que delas faziam, em muitos casos, era bem distinto e diretamente relacionado
a identificação de gênero. Por exemplo, as meninas trançavam as pulseirinhas fazendo cintas para
colocar em seus quadris e os meninos as trançavam para que se tornassem chaveiros. As
pulseirinhas eram comercializadas em pacotes fechados e muitos meninos acabavam comprando
pacotes que continham pulseirinhas cor-de-rosa. Muitos meninos usavam inclusive as pulseiras cor-
de-rosa argumentando que isso os tornava igual aos outros meninos “todos os guris estão usando”
diziam eles. Já outros meninos trocavam as pulseiras rosas por outras de outras cores argumentando
que a cor rosa não faria parte do gênero ao qual ele pretendia fazer parte, “eu não sou menina para
usar rosa”. Cabe considerar que para Louro (2001), as identidades de gênero seriam as formas pelas
quais os sujeitos se identificariam histórica e socialmente como masculinos e femininos.

Pensar o gênero implica entendê-lo enquanto um processo que não diferencia apenas
homens de mulheres, mas também homens de homens e mulheres de mulheres, Louro (2001).
Parece-nos que a utilização de artefatos e práticas que eram eminentemente tidas como do gênero
feminino passam a ser apropriadas pelos meninos das escolas em estudo justamente no intuito de se
diferenciarem de outros meninos. Meninos que usam anéis em vários dedos, usam tornozeleiras,
pintam as unhas e o cabelo, produzem uma outra forma de ser menino em que as preocupações e os
cuidados com o corpo são centrais. De certa forma esses meninos estão em “sintonia” com um
mundo onde a centralidade do consumo se organiza em torno da beleza e da juventude, como já
disse anteriormente. Um mundo que engaja seus membros pela condição de consumidor, pela
possibilidade de serem visíveis. Como no caso de J (menino, nove anos) que usa cabelos com
franja, lisos e compridos até a cintura. Que diz não se importar em ser confundido com uma menina
mas que fica irritadíssimo quando alguém puxa ou arranca seu cabelo. Olha aqui ô (mostrando as
pontas do cabelo) de tanto que puxam meu cabelo já tá todo repicado. Eles puxam, fica tudo
repicado.

Enfim, cada vez mais indivíduos com corpos espetacularizados adentram nossas escolas
causando-nos inquietações, desestabilizando-nos e incomodando-nos porque já não é mais possível
classificá-los e enquadrá-los segundo um determinado gênero. Se esse estudo, ainda em faze inicial,
pretendia analisar como os artefatos inscrevem gêneros para os corpos escolares a sua continuidade
pretende considerar como determinados indivíduos escolares tem seus corpos produzidos de forma
a desestabilizar o binarismo masculino/feminino.


Referências

BAUDRILLARD, Jean. A sociedade de consumo. Trad. Artur Morão. Rio de Janeiro: Edições 70,
1991.

BAUMAN, Zygmunt. Globalização: as conseqüências humanas. Trad. Marcus Penchel. Rio de
Janeiro: J. Zahar, 1999.

COELHO, Cláudio N. Pinto. A cultura juvenil de consumo e as identidades sociais alternativas. In:
Líbero. São Paulo: Ágil Gráfica, ano 1, n. 2, jul./dez. 1998.

JAMESON, Fredric. Pós-Modernismo. A lógica cultural do capitalismo tardio. Trad. Maria Elisa
Cevasco. São Paulo: Ática, 1996.

LOURO, Guacira Lopes. Gênero, sexualidade e educação. 4 ed. Petrópolis: Vozes, 2001.

MEYER, Dagmar. Gênero e educação: teoria e política. In: LOURO, Guacira Lopes; NECKEL,
Jane Felipe; GOELLNER, Silvana Vilodre (orgs.). Corpo, gênero e sexualidade: um debate
contemporâneo na educação. Petrópolis: Vozes, 2003. p. 9-27.

SANT’ANNA, Denise Bernuzzi de. Transformações do corpo: controle de si e uso dos prazeres. In:
RAGO, Margareth; ORLANDI, Luiz B. Lacerda; VEIGA-NETO, Alfredo (Orgs.). Imagens de
Foucault e Deleuze: ressonâncias nietzschianas. Rio de Janeiro: DP&A, 2002. p.99 - 110

SANTOS, Luís Henrique S. dos. Um pretinho mais clarinho... ou dos discursos que se dobram nos
corpos produzindo o que somos. Educação & Realidade, Porto Alegre, v. 22, n. 2, p. 81-115,
jul./dez. 1997.

SANTOS, Luís Henrique Sacchi dos. Pedagogias do corpo: representação, identidade e instâncias
de produção. In: SILVA, Luiz Heron da. (org.). Século XXI: Qual conhecimento? Qual currículo?
Rio de Janeiro: Ed. Vozes, 1999.p. 194-212

SARLO, Beatriz. Cenas da vida pós-moderna. intelectuais, arte e vídeo-cultura na Argentina. Trad.
Sérgio Alcides. 2. ed. Rio de Janeiro: Ed. UFRJ, 2000.

SCOTT, Joan. Gênero: uma categoria útil de análise histórica. Educação & Realidade, Porto
Alegre, v. 20, n.2, p. 71-99, jul./dez. 1995.

SENNETT, Richard. A corrosão do caráter: conseqüências pessoais do trabalho no novo
capitalismo. Trad. Marcos Santarrita. 8 ed. Rio de Janeiro: Record, 2004.


1

A produção de “marcas para os corpos” pode ser entendida de forma polissêmica. Tanto podem ser marcas
relacionadas a atributos físicos como magreza, cabelos lisos e compridos, seios e nádegas volumosos, etc. Como podem
ser marcas de grandes corporações como Nike, Coca-Cola, e Malboro que imprimem significados específicos para os
corpos que as portam. Bem como podem ser “marcas” de raça/etnia, sexualidade, geração, etc., além de outros
significados possíveis.

2

Afirmativas como essa, feitas ao longo desse trabalho, não tem o intuito de buscar a generalização dizendo por
exemplo que todos os(as) alunos(as) produzem seus corpos dessa forma. Tais afirmativas servem para colocar em
evidência e analisar elementos observados durante a pesquisa sem procurar abranger “todos” os alunos com os quais se
teve contato e muito menos o “todo” de um aluno.

3 Uma espécie de pião industrializado, inspirado no desenho animado de televisão onde se travam disputas típicas de
um tradicional esporte japonês.

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